
VIVENDO UM RPG
“O mundo nunca foi amigo dos menos favorecidos. Em todas as histórias que envolve uma mente racional, aquela que mais castigou as terras da própria casa foram os Humanos. Tantas vidas foram vítimas de inúmeras crueldades, de vários tipos, mas este ser não compreende a lei da igualdade. Esperamos que eles não abusem de seu poder e não acabem como nós, os exilados. ” – Mestre Bárbaro Ancião.
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Dragões Gêmeos: O Reino de Gelo
O rio sempre se agitava nas noites de lua cheia. Sua corrente flui com toda a energia, desaguando nas praias próximas aos vilarejos dos Selvagens. A luz da lua cheia brilhava no reflexo da água, guiando os filhos da noite mais profunda, mergulhados no desespero da selva densa, mas com um pingo de esperança provinda da mãe lunar. O ar frio se opunha em comparação com a temperatura durante o dia. Gélida, a brisa balançava as folhas das árvores gigantes. Esquilos, cães e gatos selvagens, outros felinos, caninos, primatas e criaturas completamente indecifráveis vagavam pelas terras ariscas do oeste dos mapas de Pan Gu. A muito tempo, dominada pela raça dos poderosos Selvagens, criaturas com um histórico provocador e relutante, firmaram suas vilas e cidades nas redondezas do rio que corta as seis nações que vivem no continente. Aquela região oeste era conhecida pela sua densa batalha pela sobrevivência, principalmente em relação aos seres racionais que ali viviam.
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Longe das civilizações humanas, e exilados do primeiro mundo, dos anjos alados, os nascidos na selva eram hábeis caçadores, principalmente os lobos nos dias de lua cheia, e as feiticeiras, nas luas novas. Para elas, quanto maior a escuridão que se envolviam, maior era seu poder de camuflagem e assim, garantiam sua sobrevivência. Criaturas violentas, ariscas, mas tão opostamente interligados com a espiritualidade e a mãe natureza que os humanos, em sua maioria fúteis e consumistas, cuja mentalidade focava apenas em expandir suas terras. Os mestiços de animais protegiam sua mata, envolvendo-se nela como uma mãe protege seu filho. A ingratidão dos que foram defendidos, que possuem um lugar de ouro no trono ao lado do criador, era o maior dos castigos recebidos por todos os miseráveis Selvagens.
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“A muito tempo, o deus Pan Gu criou as terras que pisamos, e sobre ela, ele permitiu que os humanos e alados vivessem em harmonia com a natureza. Alguns dos nossos não entenderam a mensagem de união, e desejavam caçar os humanos por serem inferiores em seu poder mágico. Estes traidores foram exilados e amaldiçoados pelo deus Pan Gu. Este é o nascimento do nosso povo, os anjos caídos que vivem entre as selvas, sobrevivendo.” - Feiticeira Megan Jaeger.
As palavras do mestre e de sua mãe ressoavam enquanto a pequenina adormecia debaixo das raízes de uma das árvores, alguns quilômetros ao norte da Vila da Ponte Quebrada, onde nasceu. Era uma criança em torno de seus infantis dez anos, cujas madeixas negras, longas e ressecadas envolviam partes do corpo. Trajava um quimono sujo e rasgado, de um tecido que já foi nobre, e um carmim cheio de barro. A expressão angelical relaxava enquanto o sono tranquilizava a menina. Suas orelhas emergiam na abóbada craniana, como orelhas de raposas, de pelos negros. Da saia do quimono havia uma abertura para a cauda pequena e laranja, com a ponta branca. Evidentemente em estado decadente, magra de tal forma que era possível notar pelos finos braços. A pele branca estava suja, e possuía um odor não muito forte, mas nada agradável. Certamente, estava fora de sua casa a meses, talvez anos. Era assim que passaram a ser tratados após o exílio. Mas muitos dos Selvagens se uniram para criar uma civilização, e assim trabalhavam em equipe para sobreviver nas matas das Feras. Ela não era uma das sortudas, ao menos não mais.
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Ruídos de passos se aproximaram em direção da árvore. Eram passos lentos e muito leves, mas o sutil barulho foi suficiente para despertar a pequena. Os olhos abriram lentamente, revelando orbes douradas, brilhantes, mas nada infantis. A profundidade da criança poderia revelar a qualquer um, uma exaustão, estresse. Um olhar comum para um adulto em campo de guerra. Levantando-se, a mestiça realçou a atenção nos passos que se aproximavam, escondendo-se melhor debaixo das raízes do tronco, em uma caverna que ela mesmo cavou. O coração palpitante, quase desesperado batia intenso, ansioso. Agachou, tentando enxergar o lado de fora de seu esconderijo, sem sair para observar, mas não foi útil. Aquele que se aproximava a encontrou de qualquer maneira. Assustou-se com a sombra que tapou a iluminação da lua cheia que entrava pelas frestas das raízes. E então, após alguns segundos que pareciam uma eternidade de aflição, o visitante revelou-se.
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Uma raposa adulta, com os mamilos inchados, trazia em sua boca um grande coelho. Muito bem caçado e morto, a carne veio para seus filhotes, escondidos dentro das saias da criança humanoide. A menina sorriu, aliviada pela raposa companheira ser quem se aproximou naquele momento assustador. Pegou o coelho e colocou no chão, atraindo os filhotes a saírem da barra de seu quimono sujo. Eram três pequenas raposinhas, esfomeadas, mas já haviam parado de mamar. Partiram para o coelho sem dó, com a fome desejando aquela carne crua. A menina ficou a observar, pois todos os dias, ela era a última a comer, esquentava a carne em uma fogueira próxima, com alguns galhos e pedras já montados e prontos para assar o alimento. Suas noites eram quase todas do mesmo jeito. A frieza da selva não perdoa nenhuma alma, nem mesmo as crianças.
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Após as raposas se alimentarem, a pequena segurou os restos da carne. A raposa mãe entrou no esconderijo, se aconchegando com os filhotes, enquanto a menina saiu, levando o coelho consigo para a fogueira apagada. Pendurou o que sobrou da carne, e logo sentou-se em frente, segurando duas pedras, uma em cada mão, e chocando as duas, na intenção de começar uma faísca para fazer o fogo. Tão concentrada estava que não percebeu uma nova aproximação. Uma mão rapidamente repreendeu o ato da mestiça, puxando-a para trás e jogando-a contra uma das árvores. Ela mal percebeu, apenas sentiu ser puxada e atirada para o tronco, onde bateu com a face, arranhando a bochecha. Ao olhar para a direção que estava antes, notou a silhueta de um homem, forte, que segurava uma espada provavelmente pesada. A pele dele era branca, os cabelos e olhos negros. Usava um traje de camponês, camisa e calça simples. Ele sorriu para ela, numa intenção nada agradável. Notou a malícia nos lábios dele, e assim que recobrou o fôlego, correu na direção oposta do esconderijo. Por mais que fosse atingida, o levaria para longe da raposa e os filhotes. Não conseguiu dar muitos passos, pois logo fora atingida pelo cabo da espada do homem nas costas. Por sorte não foi cortada, mas caiu no chão, sentindo dor. Ele caminhou em sua direção, com mais dois companheiros, estes pareciam ser mais jovens, talvez adolescentes ou até crianças. Eram dois meninos, que sorriam maliciosamente, e chamavam aquele homem de pai. A menina não tinha mais forças para se levantar, mas tentava se mover, arrastando o corpo com a força das mãos. Lágrimas jorravam da face, e ela gritava, o desespero tomando conta de sua alma.
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A canina mãe ouviu os gritos, e saiu do esconderijo, deixando os filhotes ali em segurança. A raposa laranja correu em direção à sua companheira, rosnando para os três. Um impulso potente lançou o corpo dela em direção aos inimigos, num salto perfeito, encaixando a boca na nuca do mais novo, e rasgando facilmente sua carne, quebrando o osso e o matando instantaneamente. Tudo foi tão rápido que ao notarem, o menino já estava caindo. Sem pensar, o homem avançou para cima da raposa, raivoso, segurando a espada na mesma intenção mortífera. Lançou um golpe, e ela tentou fugir. A lâmina da espada atingiu metade das cortas da raposa para trás, destroçando completamente seus movimentos e partindo ela em dois na altura do quadril. A pequena garota viu aquilo tudo acontecer, o corpo paralisado de dor. Chorou muito mais, gritando não apenas pelo medo e horror, mas pela sua companheira, que cuidava de si e caçava, compartilhava seu abrigo e alimento com uma exilada perdida no mundo. O homem e o outro menino então voltaram suas atenções para a criança caída, logo puxando-a forte e rasgando facilmente suas roupas. Ela gritou, ainda mais desesperada.
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[Homem] – Segure ela pelas mãos.
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[Menino] – Certo pai!
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O garoto obedeceu ao comando do pai, e com a menina nua, se debatendo no chão daquela selva ingrata, chorando e clamando desesperada, o homem pois seu genital para fora, em uma intenção simples e clara. Segurou as pernas da criança, e preparou-se para a penetração. Ela gritava mais ainda, sem saber o que iria acontecer. Debatia-se ainda mais forte, mas era tudo em vão. O menino era forte, mais velho que ela. E o homem nem se poderia comparar.
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[Homem] – Quando eu terminar, você poderá brincar com ela como eu te ensinei!
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[Menino] – Tudo bem pai.
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No toque da cabeça do genital masculino daquele homem, um brilho paralisou e tomou a atenção deles. Antes que ele continuasse o estupro, mas sem soltar a menina, olhou para trás, assim como o menino também o fez. Os olhos da raposa brilhavam em azul. Os olhos dos animais da floresta emergiram das árvores, dos becos, e buracos. Os três filhotes estavam ali, rosnando para o homem, mas seus olhos brilharam intensamente. A menina fraca, recebeu algo que jamais esperava. Seus olhos antes dourados ficaram azuis, brilhantes como os de todos os outros animais. Suas mãos pequenas ganharam garras afiadas. Ganhou presas e seu espírito selvagem dominou seu corpo. Com uma força brutal, a raposa escapou das mãos dos dois humanos, decapitando as mãos de ambos. O sangue jorrava dos membros perdidos. Ainda submersa naquele poder insano, a menina atirou-se para cima do homem, e com as garras, arrancou o genital dele, arranhou todo o corpo e rosto, deixando marcas profundas. Sua aura era tão intensa que seus cortes com as garras queimavam. Ela rugia, como uma verdadeira selvagem. O ódio tomou sua alma racional, assumindo a forma de sua essência mais profunda, aquela que os humanos chamam de demônio. O homem se debateu por alguns segundos, e desmaiou em seguida pela grande quantidade de sangue perdida. O menino correu, mas seu destino seria semelhante ao destino do pai, em pouco tempo.
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A menina sentiu certa tontura envolver seu corpo, e toda aquela energia brilhante foi diminuindo lentamente até desaparecem por completo, e seus orbes voltarem ao tom de dourado. Estava com a respiração ofegante, nua e perplexa, mas aliviada. Os filhotes correram em sua direção, também já haviam perdido todo aquele brilho azul e estranho. Saltaram no colo dela, e logo, a mãe deles, agora com a pelagem branca, se aproximou da menina. Em resposta, a pequena sorriu, sabia que estava assinando uma promessa, de cuidar das criaturinhas pequenas e fofas para a raposa mãe, que deu a vida para lhe ajudar. Seu espírito deu-lhe o poder e energia o suficiente para sobreviver pelos últimos dois anos, desde que se encontraram pela primeira vez, a raposa como um filhote, e a menina, em seus oito anos de vida. Sorriu, por mais uma noite que dormiria tranquila e viva, junto dos três bebês raposa. Voltaram ao esconderijo, mas aquela era a última noite deles, ao menos naquela árvore.
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